Quando camponeses, fazendeiros e governo se unem e não há má vontade neles, o resultado pode ser a criação de verdadeiros paraísos agrícolas, como já acontece no semiárido do Nordeste.
No final de março, nos arredores de Canindé do São Francisco, em pleno sertão do noroeste de Sergipe, as chuvas ainda não chegaram. Há sete meses do céu não cai gota d'água, e o caminho de terra que percorremos é cercado por arbustos secos de cor cinza, pelas figuras espectrais de macambiras (grandes árvores típicas da caatinga) cheias de espinhos, por extensões infinitas de uma terra dura que já começa a rachar.
Desde a alvorada, o sol sobe e ganha força; às 10 da manhã, o termômetro marca 42 graus e a sensação é a de mergulhar num inferno escaldante. Carcaças de vacas e de cavalos aparecem aqui e ali na beira da estrada. Mais à frente, diante de um casebre de pau a pique, pai e filho amarram um toldo de lona numa quixabeira para sombrear uma vaca deitada que não irá mais se levantar. Fazem aquilo por pena, para amenizar a agonia do animal.À medida que nossa Kombi percorre a estrada, em meio à vegetação ressequida e empoeirada, vemos bandeiras nas cores verde, vermelha e preta se agitarem no alto de paus fincados. São bandeiras do Movimento dos Sem-Terra (MST), que indicam acampamentos de sem-terra. Alguns permanecem lá há mais de dez anos, em suas "cidades negras", como são chamadas em razão da lona preta dos barracos, enquanto aguardam decisão da Justiça para a posse definitiva da terra - ou não.
Os acampamentos mais novos são facilmente reconhecidos, pois agora utilizam lonas plásticas de cor cinza-claro. Dali os invasores não arredam pé, à espera de que sua condição de acampados mude para a de assentados. Sempre na visão de um mesmo sonho: fazer no pedaço de terra que tomaram o que foi feito nos dois assentamentos mais antigos da região, Cuiabá e Jacaré-Curituba, surgidos na década de 90.
De repente, em meio à caatinga seca, uma visão de paraíso: imensos tabuleiros verdes, traçados com precisão geométrica, começam a surgir em toda parte. São plantações de quiabo, abóbora, feijão-de-corda, milho, mandioca e pastos verdes que se estendem a perder de vista. Alguém informa que o quiabo produzido nessas terras abastece boa parte da Bahia, de Sergipe e chega até Minas Gerais. A área de plantio da Cuiabá está hoje em torno de aproximadamente 700 hectares, dos quais 80% são plantações de quiabo.
A produção é tão grande que já foi criada a Festa do Quiabo, em 27 de setembro, dia dos santos quiabeiros, Cosme e Damião. Como se explica esse milagre? É simples: a terra fértil é Deus quem dá; a água vem do rio São Francisco; o braço que trabalha é o dos agricultores dos assentamentos de Cuiabá e Jacaré- Curituba, hoje totalmente regularizados.
Para começar, já não é correto chamá-los de assentamentos. Localizados a poucos quilômetros de Canindé, eles são hoje verdadeiros povoados com ruas pavimentadas, praça central com igreja, templos evangélicos, campo de futebol, escolas, creche, dispensário médico, centros comunitários e - última novidade - salão para o aprendizado de informática. "Logo teremos computadores instalados", relata com orgulho João de Jesus, presidente da associação de moradores de Cuiabá, que tasca: "Não vamos mais ficar excluídos de nada." As casas das famílias assentadas são simples, porém amplas e arejadas. Todas possuem varanda e antenas parabólicas de televisão no teto. Também lá, a novela das oito é sagrada... Mas, na estrada que leva aos assentamentos, nada os assinala. Não há placas para orientar os visitantes, como se agora seus moradores não quisessem mais chamar a atenção.
DE REPENTE, EM MEIO À CAATINGA SECA, IMENSOS TABULEIROS VERDES, TRAÇADOS COM PRECISÃO GEOMÉTRICA, COMEÇAM A SURGIR
Cuiabá e Jacaré-Curituba têm gêneses paralelas, porém diferentes.
Já no seu nascimento, o que diferencia um do outro é a forma como se conseguiu a posse da terra. No assentamento Cuiabá praticamente não houve conflito. A histórica fazenda que pertencera à família Brito, esconderijo do cangaceiro Lampião, foi invadida e logo depois o proprietário, Antônio Duarte Dutra, aceitou negociar as terras com os sem-terra e o Incra. Um acordo foi fechado e a transição aconteceu em relativa boa paz. Em apenas dois anos, todo o processo estava concluído.
Em Jacaré-Curituba, porém, a propriedade foi conseguida no grito. O MST descobriu que aquelas terras seriam desapropriadas pelo governo para um projeto de agricultura irrigada, nos mesmos moldes dos realizados em Petrolina e Juazeiro. E as terras seriam arrendadas para grupos investidores estrangeiros. Várias manifestações de protesto ocorreram, as terras foram invadidas por famílias camponesas ligadas ao MST. Depois de uma impressionante marcha de 25 mil pessoas em Aracaju, o governo entregou os pontos e as terras para o movimento.
Jacaré-Curituba é hoje o maior assentamento de migrantes da América Latina, apresentado como novo modelo de ocupação de terras improdutivas. Com cerca de 5 mil moradores, está dividido em 36 agrovilas com 20 famílias cada uma. Diferentemente da maioria dos outros assentamentos brasileiros, em Jacaré-Curituba as casas dos lavradores estão próximas das áreas de plantio.
O MST que se observa nesses assentamentos sergipanos sugere um aspecto pouco discutido na atual profusão de reportagens e estudos sobre os movimentos dos sem-terra disseminados no território brasileiro: o de que parecem existir em nosso país vários MSTs, caracterizados por estratégias, táticas e posturas políticas diversificadas.
Na escola Manoel Messias Cordeiro, em Jacaré- Curituba, uma cena com a garotada que chega para as aulas nos chama a atenção. As crianças são bonitas, saudáveis, vestidas com capricho. Descem em polvorosa do ônibus que as recolhe nas agrovilas e correm para as salas de aula. Cristina, diretora da escola, explica: "Procuramos priorizar a leitura e cativar as crianças no contexto da realidade em que vivem (a evasão escolar é nula). E, lógico, com uma ótima merenda. No início do assentamento, há quase 15 anos, o índice de analfabetismo dos camponeses era de 80%. Hoje, ainda é alto, cerca de 30%, mas entre a meninada é praticamente zero", avalia a diretora, entusiasmada.
"O COMEÇO, A MISERABILIDADE ERA TOTAL. NÃO TÍNHAMOS PARA ONDE IR. COMÍAMOS PALMA E PÃO DE MACAMBIRA" SELMA DOS SANTOS CRUZ
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TEXTO E FOTOS: HEITOR REALI, SILVIA REALI E LUIS PELLEGRINI, DE CANINDÉ DO SÃO FRANCISCO (SE).
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